Segundo levantamento da Kantar, em 2023, brasileiro fez um pedido a cada 15 dias em plataformas de entrega como o iFood
Na última semana, o caos se instalou nas redes: profetizaram o fim do “arroz e feijão” feitos em casa e os brasileiros saíram em defesa da dupla sagrada. Enquanto chefs renomadas e nutricionistas apontaram a importância da comida caseira na manutenção dos costumes e da saúde da população, mulheres sobrecarregadas confessaram o desejo de nunca mais cozinhar na vida. Diante da repercussão negativa de uma entrevista à imprensa, o CEO do iFood, Fabricio Bloisi, explicou que, na verdade, não acredita que as pessoas deixarão de cozinhar em dez anos, mas que existe sim uma tendência das pessoas fazerem menos comida em casa. Apesar da retratação de Bloisi, a discussão foi posta à mesa: o ato de cozinhar em casa vai acabar?
No Brasil, a presença do delivery no mercado aumentou de 80% em 2020 para 89% em 2022, segundo a consultoria Kantar. E só em 2023, o brasileiro fez um pedido a cada 15 dias em plataformas de entrega. Segundo o levantamento, o principal motivo para fazer compras em plataformas como o iFood é “não se dar ao trabalho de cozinhar” (24%), usar a refeição como mimo ou recompensa (14%) e preferir ficar em casa a visitar um restaurante (13%). Segundo o aplicativo, no ano passado, as marmitas foram as mais pedidas. Mas o Kantar apontou que cerca de 40% das ocasiões de consumo são realizadas no jantar, aos fins de semana, e os brasileiros têm a pizza como a comida favorita.
Na casa da psicanalista e empreendedora Tammara Viana Rezende, de 38 anos, o almoço é sempre com temperinho caseiro, mas à noite seus filhos Matheus, de 12, e Júlia, de 11, são livres para pedir delivery. Ela decidiu fazer o almoço diariamente e esperar eles voltarem da escola para a família sentar à mesa e fazer a refeição juntos. “Comida também é afeto, é uma forma de carinho… É uma forma de reunir, de conversar… Eu tenho filhos adolescentes agora e eles largam um pouco a internet, o celular. As crianças falam ‘mãe, sua comida tem um cheiro maravilhoso; é a melhor comida do mundo’. E é o mais importante na vida essa resposta para mim”, conta.
Para Tammara, a hora da refeição é um momento crucial para fortalecer laços familiares, proporcionar segurança emocional e até contribuir para o desenvolvimento das crianças. “Naquele momento, a família também pode resolucionar conflitos que podem aparecer no dia a dia. É natural e muito prazeroso”, explica a psicanalista.
Nem mesmo Kelma Zenaide, de 51 anos, mestre culinarista, que vai abrir seu restaurante Território de Aquilombamento Kitutu em BH no mês que vem, abre mão de cozinhar em casa. “É aquela hora de troca, de afetividade, de traçar novos laços. Para mim, é fundamental”, explica.
Desde a infância, Zenaide viu seu avô, de origem quilombola, chegar do trabalho, pegar o pilão e, de forma sistemática, macerar condimentos que seriam a base dos temperos de carnes, como o costelão de boi e o coração recheado. “Ele chegava 14h e ficava até 22h cozinhando. A gente reunia a família toda. Até hoje produzo a carne de lata [ensinada por ele]. O delivery jamais vai tomar o lugar de fazer uma comidinha em casa”, explica.
Hoje em dia, ela mantém a tradição de cozinhar para sua esposa e seus enteados, num churrasco em família. “Tem uma geração, de 25 anos, que ainda preza muito pela praticidade do delivery, mas os jovens que estão amadurecendo agora tendem a retomar a alimentação em casa”, prevê.
Ela explica que, por mais que seja proprietária de um restaurante, acredita que seja importante preocupar-se com a saúde, saber a procedência do alimento. “Que mão é essa que está manuseando a comida? Não é só aquilo que vai no prato. Você se alimenta da energia também”, diz.
Alimentação pesa (e muito) no orçamento do brasileiro
Enquanto se discute a afetividade presente na tradição de se cozinhar em casa, não é possível esquecer que muitos brasileiros fazem as próprias refeições porque esta é a única opção possível. Para eles, comer fora de casa ou pedir delivery é sinônimo de luxo.
De acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares, do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), divulgada em 2019, as famílias com rendimento de até dois salários mínimos (em 2018 então em R$ 1.908) gastavam 22% do orçamento com alimentação. Entre aquelas com rendimentos mais altos, o custo com alimentação representava apenas 7,6%.
Diogo Santos, economista da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (Ipead/UFMG), acredita que hoje o peso da alimentação no orçamento familiar seja ainda maior. “Essa pesquisa foi feita antes da pandemia, quando teve uma inflação forte dos alimentos. É possível que as famílias de até dois salários mínimos tenham um gasto com alimentação acima dos R$ 620, que seriam esses 22% do salário mínimo atual”, afirma. Apenas em 2022, a inflação de alimentos foi de 11,64%.
Segundo o Ipead, em BH, no último ano, as refeições em restaurantes ficaram até 11% mais caras, enquanto a alimentação dentro de casa subiu menos de 1%, devido à queda nos preços das carnes e do gás de cozinha mais barato.
“As famílias, em geral, já têm um gasto com alimentação que não é o ideal; não é o que gostariam. Para aquelas de menor renda, a alimentação em casa não é só por ser mais saudável: é uma forma de economizar”, explica Diogo Santos.
Segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), o consumo nos lares brasileiros aumentou 3,09% de 2022 para 2023. Em dezembro, o consumo cresceu 18% e registrou o maior percentual dos últimos 24 meses na comparação mês x mês anterior. A menor inflação dos preços dos alimentos para consumo no domicílio na comparação com o consumo fora do lar foi um fator essencial para esse crescimento, segundo a Abras.
Um levantamento da Kantar também apontou que os salgados prontos passaram de 11% da preferência em 2019 para 15% em 2022, especialmente para as classes D e E. Enquanto isso, as refeições completas caíram de 7% para 4%, respectivamente. “Não é por acaso que tem tantas lanchonetes no Brasil. Comer um lanche é mais barato se você vai precisar comer na rua de qualquer jeito”, explica Diogo.
Arroz e feijão: uma combinação extremamente nutritiva
Nos últimos anos, a dobradinha arroz e feijão vem encontrando menos espaço no prato do brasileiro. De 2008-2009 a 2017-2018, a frequência de consumo de feijão caiu de 72,8% para 60,0% e de arroz de 84,0% para 76,1%, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, divulgada em 2019.
Para Renata Rodrigues de Oliveira, de 43 anos, nutricionista especializada no tratamento da obesidade do Instituto Mineiro de Endocrinologia, a mistura do arroz e feijão, além da questão cultural, é extremamente nutritiva. “Tem carboidrato e a combinação, para quem não tem acesso a uma proteína animal, que é sempre superior em termos de qualidade, fornece alguns aminoácidos essenciais para o consumo”, explica.
A nutricionista explica que, ao cozinhar em casa, é possível garantir um maior controle da forma e qualidade do preparo. “Você pode usar um tempero mais natural, uma gordura de qualidade, como azeite ou uma pequena quantidade de manteiga… Fora o preço: além de ser mais saudável, é imensamente mais barato”, detalha.
Renata lembra que o crescimento da taxa de obesidade na população é cada vez mais alarmante. Segundo o Atlas Mundial, a projeção é que, em 2035, 41% dos adultos brasileiros estejam obesos. “Os riscos são imensos: diabetes, hipertensão e doenças associadas à obesidade. Tem que cuidar do que consome, diminuir os ultraprocessados e tentar manter uma alimentação mais natural possível”, diz.
A nutricionista, porém, evita demonizar os industrializados e acredita que o consumo saudável passa pela boa escolha: passata de tomate, iogurte natural e temperos naturais a granel são exemplos de produtos que, segundo ela, podem sim facilitar o preparo das refeições.
“A alternativa para poder otimizar [o preparo], deixar a alimentação mais saudável e também ter um pouco mais de praticidade, seria ter certos alimentos ou preparações já congeladas. Uma carne moída com molho de tomate, por exemplo, é muito versátil: pode ser a proteína do dia, você pode colocar num sanduíche, pode fazer uma massa ou colocar numa crepioca”, exemplifica. Para ela, tendo o básico – arroz, feijão e carnes congelados – metade do caminho já está adiantado.
Fonte: Jornal O Tempo – Publicado em 26/02/2024 – caderno de Economia – reportagem Shirley Pacelli.